2007-03-16

Mala de cartão reforçado



Estes e outros jornais publicaram esta semana, no âmbito duma parceria com Empreender, um artigo intitulado "Mala de cartão". Fizeram-no em primeira mão, mesmo antes da notícia de hoje que alimenta os principais serviços noticiosos de Portugal. Nessa notícia dá-se conta do desmantelamento duma operação que mantinha largas dezenas de portugueses a trabalhar em Espanha em condições de completa "indigência" (o adjectivo é de um desses serviços noticiosos) . Pela oportunida, aqui fica o artigo.

Mala de cartão
Por Vasco Eiriz

Com tudo o que isso tem de positivo e negativo faço parte duma geração pós-1974. Há já alguns anos que não encaixo em nenhum conceito oficial de juventude e aproximo-me a passos largos da esquina da idade. Faço esta contextualização para informar o leitor de que começo a desconfiar que, à semelhança de todas as gerações de há vários séculos a esta parte, também a minha geração está a falhar.

Com os anos vi muitos amigos de infância e juventude a emigrar à procura das oportunidades que nunca encontraram no país. Pensei que fosse um fenómeno isolado, associado à interioridade. Mas não. É muito mais do que isso. […]

Como digo, estávamos convencidos que o tempo da mala de cartão tinha passado. Enganamo-nos. Ao longo de todos estes anos a hemorragia jamais parou. Terá sido porventura atenuada depois de 1986 com a enxurrada financeira de Bruxelas. Mais tarde, durante alguns anos os ucranianos convenceram-nos que éramos uma espécie de França ou Suíça do Século XXI. Ainda por cima alguns exerciam medicina, o mito profissional do português médio! Iludiram-nos e iludimo-nos.

Centenas de quilómetros de auto-estrada e dez estádios de futebol depois, as estatísticas continuam a exibir o fenómeno da emigração. Preocupante. Os países de destino tradicional – França, Suíça, Luxemburgo e ali à volta – mantêm-se atractivos, mas agora há um toque mais anglo-saxónico na diáspora. Há centenas de portugueses a criar perus em Inglaterra, a manter galinhas na "pobre" Irlanda e alguns a tirar pós-graduações no MIT. Estes últimos não usam mala de cartão. Basta-lhes uma bolsa. Do mal, o menos; já ninguém vai a salto.

Há outros indicadores ainda mais curiosos. Por exemplo, o incontável número de trabalhadores que semanalmente atravessam as fronteiras terrestres em carrinhas brancas para alimentar a construção civil em Espanha. Esses, claro, nem sequer aparecem na estatística da emigração. No regresso, enchem o depósito de combustível e aviam as compras da semana com IVA mais amigável. Outros nem sequer precisam de emigrar. Talvez por serem mais afoitos, são gestores da linha intermédia de empresas espanholas e passeiam-se em altas cilindradas com matrícula castelhana. Sem IA.

No historial da emigração portuguesa quiseram ainda convencer-nos de que os que saíam não tinham habilitações ou competências para cá ficar. Era tudo gente para empregos de colher e vassoura, dizia-se. Voltaram a enganar-nos. […]

Mas o problema é agora mais preocupante. Muitos dos que continuam a sair levam canudo atrás e alguns fazem mesmo os possíveis para trazer o canudo lá de fora. Veja-se, por exemplo, a saída de quadros superiores ou esse caso gritante dos estudantes portugueses de medicina em Espanha e na República Checa.

A propósito de checos, eslovacos e outros eslavos, há alguns anos divertia-me imenso a ler a Vida Soviética e a tentar compreender os amanhãs soalheiros dos países do outro lado da cortina de ferro. Hoje, afinal de contas, num desses países estão a formar-se os nossos médicos, outros alimentam a internacionalização envergonhada de algumas das maiores empresas portuguesas e outros vão-nos ultrapassando nos "rankings" da competitividade internacional. Um deles – para os lados do Báltico – até se tornou recentemente o primeiro país do mundo a introduzir o voto electrónico, enquanto nós, por cá, cada vez que há eleições ou referendos, debatemos a desactualização dos cadernos eleitorais. Enfim, paradoxalmente os factos parecem querer provar que os amanhãs que cantam da Vida Soviética não eram assim tão propagandísticos.

Por tudo isto não deixa de ser sintomático que António Barreto, conhecido sociólogo responsável pela série da RTP1 intitulada "Portugal – Um Retrato Social" e conhecedor da nossa estirpe tenha afirmado recentemente em entrevista a um jornal: "Eu não amo nada em Portugal, a não ser pessoas. O que me faz ficar é a idade. Se tivesse 50 ia-me embora e começava tudo de novo. Com 64 é difícil."
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