2011-03-18
Este país não é para velhos
Está em curso o endeusamento da cantiga da Deolinda. Dizem-nos que virou "hino de geração", daqueles que estão na casa dos 20 e 30 anos.
Comecemos pelo óbvio. A banda da moda agrada. Gosto de Bacalhau, de seu nome próprio Ana, acompanhada por indivíduos que são "gentlemen".
Mas este endeusamento farta. Em primeiro lugar porque a utilização feita da canção parece hipócrita e injusta. O desencanto de Ana Bacalhau e colegas (e, ao que nos dizem, de toda uma geração) com a sua circunstância é óbvio. Não há remuneração, "isto está mal e vai continuar", e é uma sorte haver estágios. O mundo é "parvo", e "para ser escravo é preciso estudar". O carro está por pagar, e por aí fora.
Para letra de canção está bonito. Para lição de moral não serve. E não serve porque falta referir o outro lado da moeda. Nesse lado vê-se uma geração com tantas ou mais oportunidades e conforto do que as anteriores.
Desde logo oportunidades de formação sem a qual tudo fica mais difícil. Há não muito tempo, o curso não passava duma miragem e o trabalho procurava-se com menos de 20 anos de idade, "sem papéis" e a salto para o outro lado dos Pirinéus. Não havia "casinha dos pais".
Em contraste, hoje Bolonha instalou-se naquilo a que pomposamente se chama Espaço Europeu de Ensino Superior. Em menos de cinco anos consegue-se uma licenciatura e um mestrado. E, qual Erasmus, até se pode ir a Praga ou a Santiago cursar medicina. Terão os mais jovens alguma noção do que era aceder a uma licenciatura no passado e conseguir licenciar-se?
É óbvio que nos tempos que correm é difícil sair da "casinha dos pais". Mas nunca houve tantos jovens proprietários de residência.
Mais. Nunca se acedeu tão facilmente ao "low-cost" das companhias aéreas. Dá-se um salto a qualquer capital europeia mais rapidamente do que um expresso nos levava do Minho a Lisboa.
O país está hoje de tal forma asfaltado, que o difícil é escolher a auto-estrada ou o IP, mas o GPS facilita. Há o Intercidades, o Alfa, e até muitos metros de superfície. E dizem que vem aí o TGV. Enfim, nunca a mobilidade – um factor essencial para procurar trabalho – foi tão grande.
Temos a mobília descartável a baixo preço. Antes da IKEA, comprar o sofá e o resto não era um exercício fácil! Hoje o sofá é bem mais confortável. Para a carteira e para a coluna. O móvel banalizou-se. E já se reciclam electrodomésticos em larga escala. A cozinha transferiu-se para o McDonalds, para as sopas e para as sandes do "shopping". Um equívoco, é certo, mas há muita gente que sai da casinha para lá ir. Porque gosta.
Veja-se mais um indicador de conforto: o parque automóvel. Nunca foi tão Smart e grande. Em quantidade, em opções. Diz a Deolinda que o carro está por pagar. E eu acrescento que dantes nem crédito havia, quanto mais carro! Hoje o difícil é escolher o modelo, o motor, e a cor. E ainda por cima o engenheiro diz que vamos ter carros eléctricos subsidiados! Querem melhor?
E o que dizer do wireless, do wi-fi, da fibra óptica, da TV por cabo, da TV por satélite ou do LCD? E o telemóvel-PDA-tablet-pc que também é "smart" e tem ecrã táctil?! E, claro, com Facebook e Twitter nunca o povo teve tantos amigos. Os tempos em que vivemos são bem mais fascinantes do que quando se aguardava pelo comboio das 16:40 para ler o maçudo Expresso.
Sem desconsideração para com Deolinda, poderia advogar-se que nunca foi tão fácil chegar ao Coliseu e enche-lo. Porque, apesar de tudo, há poder de compra. E os festivais de verão e os cinemas também enchem.
Noutros tempos, só ao fim de muitos anos, quilómetros de estrada e alguma porrada em sítios como o Rock Rendez-Vous é que era possível testar o Coliseu. Os Xutos e outros "cotas" que o digam. O cinema já era a cores, mas estava muito longe do "multiplex".
Vá lá, partilho das preocupações de "Parva que sou" da Deolinda, mas sejamos honestos: nesta história não há inocentes, nem vencidos, nem vencedores. Não me venham com cantigas e lições de moral: não creio que as gerações anteriores tenham vivido menos à rasca do que esta. Estamos todos à rasca. E alguns nem hino tinham.
Parvo também eu não sou.
Crónica publicada no Jornal de Barcelos, 23 de Fevereiro de 2011, p. 30