2011-12-26

Inventário de coisas simples

Talvez o leitor não esteja familiarizado com o fenómeno de que dou conta nestas linhas. Eu próprio já não me recordava de que existiam lojas que no início de cada ano encerravam portas para "balanço". Foi sempre um fenómeno curioso verificar que um retalhista encerrava para "balanço". Era ainda mais curioso porque lá em casa – família ligada ao comércio – nunca se encerrou portas para "balanço". Nem sequer para férias, quanto mais para balanço!

Recordo-me de ajudar a contar caixas e caixas de mercadoria fora do horário de atendimento. Depois, nas embalagens abertas tínhamos de contar o número de exemplares daquele artigo em cada caixa. Estávamos nos anos 1980. Eram tempos simples. Mais tarde, percebi a diferença entre um balanço e um inventário. Conclui que todos os comerciantes que encerravam para balanço andavam enganados porque, em bom rigor, encerravam para inventário.

Voltei aos inventários uns anos mais tarde, quando exerci auditoria. Logo pelas sete da manhã do dia 1 de Janeiro íamos para os armazéns dos clientes controlar inventários. Porque, evidentemente, no dia 2, qualquer retalhista que se preze tinha que ter tudo a funcionar em pleno. Já não era uma empresa familiar e havia os requintes duma multinacional anglo-saxónica. Mas inventários são inventários e serão sempre inventários.

Numa dessas auditorias encontrei no armazém dum grande retalhista uma palete de 1000 litros de leite por inventariar! Ter-se-ão perdido as rabanadas de alguns reis magos, mas o certo é que deixar passar 1000 litros de leite seria como não ver uma manada de vacas num campo verdejante. Estávamos na década de 1990. Tempos também simples e de vacas gordas. E pregavam-se partidas aos auditores juniores como, por exemplo, pedir-lhes que contassem pregos, algo que nunca tornou tão literal a expressão “pregar uma partida”. De há uns anos a esta parte apetece mandar contar pregos a muitos decisores quando tomam “grandes decisões” com recursos que não lhes saem do bolso.

Mas também já lá vai o tempo de auditor. E agora que me lembro, fico com a ideia que estamos sempre a regressar ao mesmo lugar, ainda que sob o manto duma pequena crónica para inventariar coisas simples.

Hoje é divertido ler o letreiro na porta de muitas lojas e saciar a curiosidade de saber se estão encerradas para balanço ou para inventário. Fico estupefacto sempre que encontro portas encerradas por dois ou três dias para inventário, balanço ou o que quer que seja. E questiono-me como é possível perder-se tanto tempo de negócio para inventariar camisolas, arroz, quinquilharia, ou leite.

Mas, talvez como nunca, neste ano que agora finda, os inventários e os balanços são bem necessários. E devem fazer-se com rigor e fazer-nos pensar. Sobretudo num ano como o de 2011 que ficará na memória como o ano em que tudo mudou. Este foi o ano em que subitamente o país descobriu que “afinal de contas” (outra expressão curiosa que faz do português uma grande língua) vai ter de pagar com juros elevados os muitos anos de vacas gordas e paletes de leite em que viveu acima das suas possibilidades. Este foi o ano em que por força das circunstâncias, a grande maioria ficou finalmente consciente de que seria obrigada a mudar de vida.

O descalabro tem muitos mais anos, é certo, mas a história dirá que foi em 2011 que ficaram visíveis as bases do nosso desenvolvimento, as mesmas que justificam o empobrecimento em que iremos continuar a viver.

Neste fim de ano, talvez mais do que nunca, deveríamos ser rigorosos no inventário das opções de 2011 e das décadas anteriores. E dizer simplesmente que esse inventário deve colocar em causa as nossas opções de política pública e acusar políticos é uma justificação frágil, demasiado fácil e desculpabilizadora. Um inventário quer-se completo, transparente, quantificável, responsabilizador, consequente. Deve ponderar as opções individuais e colectivas de todos nós enquanto indivíduos, Estado, famílias, e empresas. Enquanto este inventário não estiver plenamente realizado e for consequente, continuaremos a cometer os erros dos últimos anos.

Artigo publicado no Jornal de Barcelos de 21 de Dezembro de 2011.
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