2012-05-08

Crise com oportunidades

No período de poucos dias assistimos a dois acontecimentos raros em Portugal que sinalizam mudanças importantes. Eles mostram que as crises são uma fonte de oportunidades. Nestes casos, a crise funcionou como um estímulo para revitalizar a economia e regenerar a política. Refiro-me à campanha dos 50 por cento do Pingo Doce do passado dia 1 e ao processo apresentado pelo Automóvel Club de Portugal contra ex-governantes de que tomámos conhecimento no dia 4.

O argumento desta crónica é que existe uma leitura positiva destes acontecimentos. Uma leitura positiva porque estes acontecimentos dão um contributo – por modesto que ele possa ser – para a revitalização da economia e para a regeneração da política.

O caso da instauração do processo do Automóvel Club de Portugal contra ex-governantes é delicado. Mas ele mostra que é possível à sociedade civil desencadear mecanismos de responsabilização dos políticos que vão para além do simples resultado eleitoral. Isto é importante para o sistema político evoluir para um estádio de maior responsabilização. A questão é incontornável: se o gestor duma empresa pode ser acusado de gestão danosa que coloca em causa a própria empresa e todos aqueles que dela dependem, porque razão não aplicar o mesmo princípio aos decisores públicos?

A campanha do Pingo Doce é também ela, a todos os títulos, interessante. Não pelo aspecto caricatural da corrida ao supermercado (em bom rigor, não vi nada que não mostrasse uma população civilizada). A campanha foi interessante porque ela mostrou que existe uma parte significativa do Portugal corporativo que está mal habituada mas que pode mudar.

Essa parte significativa do Portugal corporativo a que me refiro está habituada a um "modus vivendi" a que vou chamar co-existência. Através desta co-existência, essas empresas toleram-se umas às outras e ninguém incómoda ninguém, enquanto não for incomodado. Cada empresa mantém as suas esferas de influência e não está habituada a que outras empresas as perturbem na comodidade dos seus mercados cativos. Antes pelo contrário, frequentemente fazem uns "caldinhos" entre si. É um estado de "vive e deixa viver" quase insuportável que faz com que o mínimo "comportamento desviante" como uma promoção de preço no dia do trabalhador seja atacada por muitos interesses instalados. Julgo não estar enganado em afirmar que até a Defesa do Consumidor – pasme-se – viu aspectos negativos na campanha!

A promoção do Pingo Doce – não mais do que uma "jogada de marketing" – teve pelo menos a virtude de mostrar que é possível haver um Portugal empresarial que não se baseia no cruzamento de interesses instalados, normalmente protegidos pelo Estado. Também neste país é possível ter uma economia mais pujante e ativa, respeitando evidentemente princípios elementares como o da legalidade e da responsabilidade social. Algo que a campanha do Pingo Doce não me parece ter colocado em causa.

Tanto um acontecimento como o outro são um resultado da crise instalada. No caso da política, porque é esta crise que está a fazer com que as pessoas coloquem questões que até há poucos meses não colocavam. Não só não colocavam questões incómodas como davam por adquiridos um conjunto de hábitos e um modo de vida que, definitivamente, são uma ilusão. No caso da economia, a proteção deste pequeno mercado por um reduzido número de "empresas do regime" parece também não ser sustentável. Ora isto é sobretudo evidente em tempos de crise que são favoráveis à inovação e a estratégias não convencionais. Foi aquilo que o Pingo Doce fez.

Resta agora desejar que estes dois acontecimentos não se limitem a sinalizar uma mudança para a política e para e economia portuguesa. E que eles próprios possam desencadear novos acontecimentos que melhorem o nosso sistema político e económico.

Artigo publicado no Jornal de Barcelos, 9 de maio de 2012.
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