2003-05-30

Ideias
DESLIZE

O deslize estratégico é matéria fascinante na dinâmica das organizações. O deslize caracteriza todas aquelas organizações que andam ao sabor dos ventos sem um propósito claro e direcção de objectivos definida. Nestas situações, quando o zigue-zague já não é mais comportável, chega o deslize. O desempenho cai progressivamente e, numa fase mais avançada, começa a sentir-se mal estar. O curioso no deslize é que nem sempre se sente e só os gestores mais avisados dão por ele. No Portugal de hoje existem muitos exemplos de deslize estratégico. Alguns dos mais mediáticos parecem ser o da RTP, TAP e campeonato nacional de futebol da I liga.

Os casos da RTP e da TAP são exemplares porque eles correspondem a um processo que dura há longos anos. A velocidade e declive desse deslize tem dependido não só da envolvente política de gestão das duas empresas mas também do ambiente de negócios cada vez mais competitivo em que vivem os seus sectores de actividade económica.

É óbvio que ao longo deste tempo todos os financiamentos estatais se limitaram a amortecer o deslize em vez de estimular a mudança transformacional que a queda de desempenho exigia. Ironicamente, e para nosso descontentamento, o financiamento estatal em vez de melhorar a saúde das empresas parece adiar reformas e tornar mais doce e suave o deslize. Nestes casos, a não inversão da tendência faz com que o progressivo adiar da mudança provoque rupturas, por vezes inevitáveis.

Não se sabe quanto tempo poderá durar uma situação de deslize como o da RTP e da TAP, mas, a julgar pelas notícias, o estado das companhias perspectiva a não inversão de tendência, ainda que, por vezes, circulem notícias de retoma. É, portanto, prematuro concluir se a reestruturação e/ou privatização que se anunciam trarão a mudança transformacional de que as duas empresas carecem. Em qualquer dos casos, ao deslize seguir-se-á, mais cedo ou mais tarde, uma mudança transformacional, tão mais intensa quanto mais adiada. Inevitavelmente, quanto maior o deslize maior a ruptura, sendo, não poucas vezes, imposta de fora.

O caso do futebol – para todos os efeitos um sector de actividade económica – é uma outra boa representação do deslize estratégico. São conhecidos alguns sintomas e consequências desse estado de coisas: descapitalização dos clubes, diminuição das assistências aos jogos, escalada de custos, não cumprimento fiscal, queda nos "rankings" internacionais, descredibilização. Quando assim é, a transformação é necessária já que o cenário da falência (deixar de haver campeonato de futebol) não parece plausível, ainda que essa eventualidade se possa colocar para alguns dos operadores do sector.

À semelhança das notícias que nos chegam da TAP e da RTP, também no futebol parece haver indicadores que apontam para inversão de tendência. É exemplo disso a contenção que, na presente época, parece existir na escalada dos ordenados dos jogadores.

Lamentavelmente, o que muitas vezes se verifica nas situações de deslize é que os ventos de mudança e os indicadores positivos de desempenho que se anunciam não passam de fantasias que mascaram os verdadeiros problemas das organizações. Nestes casos, é frequente muitas organizações voltarem a entrar em situação de aparente retoma, mas onde o zigue-zague se volta a instalar, pronunciando um deslize mais acentuado. Cabe aos gestores terem a visão necessária e desencadearem a transformação e revitalização de que muitas organizações carecem. Nada melhor do que momentos de crise para o fazer.

Publicado originalmente no Jornal de Notícias: Eiriz, Vasco (2002), Deslize, Jornal de Notícias (10 de Setembro), p. 18 (colaboração com a Ordem dos Economistas)
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