2012-02-15

Prego a fundo

Luísa tem uma relação simples com o automóvel. É uma relação mediada por uns quantos mecanismos, pouco mais: comando central, manipulo da porta, ignição, embraiagem, caixa de velocidade, acelerador. Por vezes acrescenta-lhe o "on/off" do AC e do auto-rádio. Nada mais do que isso. São-lhe indiferentes os benefícios do "cruise-control", ABS, EPB e de todas as outras siglas.

O automóvel é, de facto, cada vez mais um produto complexo. De tal forma que o pagamento do imposto anual de circulação também ele se automatizou. Para ser mais preciso, "internetizou-se" que é como quem diz "vá à internet, e pague aí mesmo". Sem opções, jantes de liga leve ou pintura metalizada.

Luísa deixou passar o prazo de pagamento e da tecnocracia subjacente: gerar a guia de pagamento na sua conta fiscal das "financas.pt", pagar no multibanco, e voltar uns dias depois ao écran para imprimir o documento comprovativo final e coloca-lo no porta-luvas. Passaram-se uma escassas semanas e ainda assim conseguiu faze-lo. Com atraso cumpriu o ritual com uma estranha normalidade e pagou os € 33,10, ficando tudo em ordem. Passados uns largos meses – mais precisamente 17 meses depois do pagamento –, a nota incriminatória chegou-lhe por correio. Apesar da internet!

Na forma mais tradicional de que há memória. Reconhecia que os € 33,10 tinham sido pagos, mas havia lugar a que se fizesse "justiça tributária", assim mesmo chamada. Para além da exemplar identificação da "descrição sumária dos factos", da "norma violada", e da "norma punitiva", identificavam-se longos códigos para o "n.º do processo" e para o "executado". E desta forma, Luisinha que não dá grande importância ao automóvel viu-se executada com uma "coima" de € 30 a somar a € 38,25 de "custas", num total de € 68,25. E Luísa assim fez: voltou ao multibanco, e muitos dígitos depois, parece ter ficado tudo (novamente) em ordem. Tinha sido executada. A operação.

E foi então que através do auto-rádio tomou conhecimento que o Presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses sugeria por palavras mansas um programa de "assistência" (curiosa inflexão da língua) financeira aos municípios portuguesas. Alegava que os município portugueses eram os únicos em Portugal a ser deixados por sua conta. E fazia provas: se o país teve um programa de "ajuda" financeira, se a ilha da Madeira vai beneficiar de um programa de "recuperação" financeira, porque não também os municípios – endividados numa quantia que se suspeita ser astronómica – serem "apoiados"?

Depois ouviu os representantes dos clubes "profissionais" de futebol a pedir compreensão do Governo para com dividas fiscais há várias décadas pendentes por pagar. E pensou: se realmente as "financas.pt" demoram quase dois anos a emitir uma "coima" por uma pequena dívida de escassas dezenas de euros pagos com algumas semanas de atraso, quanto demoraria a notificação de dívidas de largos milhões de euros com décadas de atraso?! Não há internet nem "fincancas.pt" que resistam, voltou a pensou.

Luísa engatou a primeira e pôs o prego a fundo. Apeteceu-lhe fazer um peão.

Artigo publicado no Jornal de Barcelos de 8 de fevereiro de 2012.
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